Bach
- Carlos Alencar
- 1 de mai.
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Introdução:
Para o primeiro artigo dessa enciclopédia, não poderia começar com outro compositor senão Johann Sebastian Bach, "o pai da música". Sua biografia é verdadeiramente fascinante, e sua obra se destaca como uma das mais grandiosas já criadas, com um legado que, em sentido absolutamente literal, se projeta ao infinito. Enquanto houver música, haverá Bach. Nesta entrada, não pretende-se realizar uma análise holística de sua vida e obra, mas simplesmente destacar episódios significativos de sua trajetória e apontar as obras-chave do repertório bachiano que todo jovem pianista deve conhecer.
Infância e Formação:
J.S. Bach nasceu em 1685 em Eisenach, uma pequena cidade da região da Turíngia, na Alemanha. Pouquíssimo se sabe sobre sua educação musical na infância, porém, vindo de uma família tradicionalmente musical, é extremamente provável que ele tenha sido instruído desde pequeno na arte do som. O século XVII foi marcado por condições de vida terríveis: a mortalidade infantil era assoladora e a expectativa de vida raramente ultrapassava os trinta. Nesse contexto, o pequeno Bach perdeu sua mãe, Elisabeth, aos nove anos, e seu pai, Johann Ambrosius, aos dez. Órfão, foi acolhido por seu irmão mais velho, Johann Christoph, organista em Ohrdruf.
É a partir de Ohrdruf que se pode traçar o início da vida musical de Bach. Sob a tutela de seu irmão, Bach aprendeu a tocar o órgão e o cravo. Nessa época, o juveníssimo Bach atuou como soprano em um coral estudantil e compôs sua primeira peça da qual a história tem registro, o Capriccio em Mi Maior BWV 993, dedicado ao seu irmão mais velho. Nos anos finais de sua adolescência, como aluno do Colégio São Miguel em Lüneburg, estudou com Georg Böhm. Durante esse período ele realizou visitas a Hamburgo para estudar com Johann Reincken, um grande organista e compositor da época com quem ele aprendeu a tradição organista do norte alemão.
Consolidação Artística e Trajetória Profissional:
Não existem evidências de que Bach tenha sido uma criança prodígio como posteriormente foram Mozart e Mendelssohn. No entanto, é bem possível que aos vinte anos de idade ele já fosse o maior organista de sua época, sabendo também cantar, tocar o cravo, o violino, a viola, a viola de gamba e compor, tudo em nível profissional. Em 1703, aos dezoito, Bach escreveu a famosíssima Toccata e Fuga em Ré Menor BWV 565, provavelmente a obra para órgão mais conhecida de todos os tempos.
Ao longo de sua vida Bach trabalhou em uma ampla variedade de cargos. Tendo começado como Violinista em uma orquestra privada de Weimar, atuou também por um curto período como Organista em Arnstadt e Mühlhausen, onde se casou com sua prima de segunda grau Maria Barbara Bach, ambos aos vinte e dois anos. Seu primeiro cargo duradouro foi na corte dos Duques Wilhelm Ernst e Ernst August, em Weimar, onde ele permaneceu entre 1707 e 1717. Trabalhando para os Duques, Bach foi um compositor prolífico, compondo diversas peças para cravo, órgão, 30 cantatas e 24 transcrições de concertos de Vivaldi, além de ter os 4 primeiros de seus 20 filhos, Catharina Dorothea, Wilhelm Friedemann, Carl Philipp Emanuel (C.P.E.) e Johann Gottfried Bernhard. Seus esforços nesse cargo e a progressiva ascensão de seu nome no mundo musical lhe concederam alguns aumentos e uma eventual promoção para o cargo de Mestre de Concerto.
Nos seus últimos anos sendo empregado em Weimar, as instabilidades políticas da corte começaram a afetar sua arte, o que o fez, secretamente, buscar emprego em outro lugar. Em 1717 ele assinou um contrato para se tornar Mestre de Capela na corte do Príncipe Leopoldo de Anhalt-Köthen. O cargo de Mestre de Capela era o ápice da carreira de qualquer músico da época, variando em grandiosidade a depender de para qual corte ele trabalhava. Ao saber dessa volta que Bach havia dado na corte, um dos duques ordenou que este fosse preso, sentença que durou um mês e foi seguida por sua sumária demissão.
Não muito depois de começar a trabalhar para a corte do Príncipe Leopoldo, Maria Bárbara morreu. Alguns meses mais tarde, em dezembro de 1721, ele se casou com Anna Magdalena Wilcke, uma colega de trabalho que cantava na corte. Três anos depois de chegar à corte do Príncipe lhe foi oferecido um cargo na igreja de São Tomás em Leipzig, cargo que, com a permissão do príncipe, aceitou. A função que lhe foi oferecida na igreja exigia sua presença, no entanto, o príncipe permitiu que ele fosse contanto que continuasse compondo para sua corte.
Em 1729, Bach assumiu a direção do Collegium Musicum. Na época de Bach a música era propagada majoritariamente por três tipos de instituição: as Igrejas, as Cortes e as Sociedades Musicais. O Collegium Musicum era uma das maiores dentre essas sociedades, e presidi-la era uma posição deveras vantajosa. Lá, Bach teve a oportunidade de divulgar sua música com frequentes apresentações públicas e privadas. Nos próximos sete anos, mais 2 de seus filhos nasceram: Christoph Friedrich e Johann Christian, respectivamente em 1732 e 1735.
Um ano após o nascimento de Johann Christian, Bach foi aceito no cargo de Compositor da Corte Eleitoral Real Saxônico-Polonesa, um cargo que lhe rendeu certo poder político e aumentou a extensão de seus poderes sobre o Collegium Musicum e sobre todo o cenário musical ao seu redor. Seu renome continuou a crescer e, junto com ele, sua obra.
Encontro com Frederico II e Anos Finais:
Por volta de dez anos depois, aos sessenta e dois anos de idade, J.S. Bach protagonizou um dos momentos mais memoráveis da história da música. Por intermédio de seu filho, C.P.E., foi arranjado um encontro entre Johann e Frederico, o Grande. O encontrou ocorreu na residência real da cidade de Potsdam e teve como pano de fundo um instrumento de teclas recentemente inventado que Frederico queria apresentar ao velho Bach. Esse instrumento, de aparência muito similar ao cravo, se chamava Fortepiano e viria a causar grande sensação nos séculos vindouros sob a sua versão mais trabalhada, o piano. Vale lembrar que estamos no período Barroco e que o piano como é conhecido atualmente não existiu durante a vida de Bach, tendo se tornado popular tão somente do meio para o final do período Clássico e só se consolidado definitivamente na transição para o período Romântico.
O velho Bach logo ao chegar em Potsdam, ainda cansado da viagem, foi chamado à residência real onde Frederico pediu que ele tocasse e improvisasse para alguns convidados e para os músicos de sua corte. Para a parte do improviso, o rei propôs ao cansado Bach uma tarefa tida como impossível, improvisar uma Fuga a Três Vozes baseada em um tema composto, supostamente, pelo próprio rei. A forma Fuga, por sua natureza polifônica e contrapontística, é complexa e exige muitíssima habilidade durante sua composição. Improvisar uma Fuga exige domínio completo do instrumento e da teoria musical.
Teoriza-se que esse pedido feito por Frederico tinha o intuito de humilhar o velho Bach. Para o regozijo de todo pianista, o efeito foi precisamente o contrário, tendo servido como uma das bases para a imortalização do mito de Bach como o maior de todos os mestres. Contrariando as expectativas, Johann aceitou o desafio e improvisou, com maestria, uma Fuga a Três Vozes baseada no tema que o mundo viria a conhecer como Thema Regium. Estupefato, admirado e irritado com o triunfo de Bach, o rei o desafiou novamente, dessa vez pediu-lhe que improvisasse uma Fuga a Seis Vozes, o que o grande mestre fez, dessa vez sobre um tema próprio. Os boatos sobre esse encontro ecoaram e sua transcendência foi eternizada nas páginas da história.
Pouco tempo depois sua saúde deteriorou, causando-lhe dificuldades motoras e visuais, dificultando, significativamente, seu processo composicional. No ano de 1750 ele se submeteu a uma cirurgia nas mão de um famoso “oftalmologista” da época, Sir John Taylor. A cirurgia recuperou momentaneamente sua visão, mas complicações o levaram a ter um derrame fatal alguns meses depois. O grande mestre morreu em 28 de junho. De acordo com sua crença: deixando para trás o mundo dos homens, rumo à terra de onde vem a verdadeira música.
Obras Essenciais:
O Pequeno Caderno de Anna Magdalena Bach:
Publicado pela primeira vez em 1722, o Caderno é uma obra essencial na biblioteca do jovem pianista clássico. Geralmente considerado a porta de entrada para o estudo de J.S. Bach, a edição de 1722 reúne exclusivamente composições do mestre, enquanto a versão de 1725 incorpora também peças de outros compositores, como Christian Petzold, François Couperin, Gottfried Stölzel e C.P.E. Bach. A edição mais difundida é a de 1725, que inclui uma variedade de minuetos, polonesas, corais, a célebre Musette em Ré Maior, marchas, árias e esboços de obras que Bach posteriormente desenvolveria, como as duas primeiras Suítes Francesas e duas das Partitas.
Invenções e Sinfonias (BWV 772-801):
Depois de explorar o Caderno de Anna Magdalena, as Invenções a Duas e Três Vozes surgem como o próximo passo natural no estudo de Bach, representando a primeira imersão séria no vasto universo do contraponto. Essas 30 pequenas peças foram originalmente escritas como um exercício para seu filho Wilhelm Friedemann, e mais tarde vieram a ser publicadas como material pedagógico para seus alunos.
Quando ouvir o termo Invenção, a imagem que deve surgir na sua mente é a de uma peça pequena, contrapontística, contendo duas vozes, fortemente baseadas em motivos, enquanto por Sinfonia deve-se entender uma Invenção com três vozes ao invés de duas. Johann escreveu 15 de cada uma dessas pérolas e as organizou em uma ordem tonal ascendente, sendo oito em tons maiores e sete em tons menores. As mais famosas dentre essas são as Invenções No.8 e No.14.
O Cravo Bem Temperado:
Como terceira etapa do repertório Bachiano tem-se, possivelmente, a obra mais referenciada no estudo da música, das Wohltemperierte Klavier. Apelidado por Hans von Bülow de “Velho Testamento da Música”, o Cravo Bem Temperado se destaca como a obra mais revolucionária de seu período, no entanto, só recebeu seu reconhecimento tardiamente.
Ele é composto por 2 tomos, cada um contendo 24 Prelúdios e 24 Fugas, um total de 96 peças! Suas revoluções são múltiplas, mas como principais fatores tem-se que foi a primeira coletânea musical a abranger peças em todas as tonalidades, tanto maiores quanto menores, uma conquista feita possível através dos avanços no sistema de afinação da época. Sendo assim, o Livro I (BWV 846-869) começa com um Prelúdio e uma Fuga em Dó Maior, seguidos de um Prelúdio e Fuga em Dó Menor, seguidos do mesmo par em Dó Sustenido Maior e Menor, assim por diante. O Livro II (BWV 870-893) segue o mesmo padrão.
O primeiro livro é amplamente considerado como o rito de passagem do pianista intermediário para o pianista avançado. Ao longo da história, tocar o Cravo por completo foi um desafio para diversos pianistas de nível profissional, sendo uma verdadeira prova de pianismo e paixão pela música. Não só para os intérpretes como também para os musicólogos e historiadores da música, o Cravo é um verdadeiro marco e uma fonte pulsante de conhecimento e oportunidades de aprendizado. Sua peça mais famosa é o Prelúdio em Dó Maior, do Livro I, que foi utilizado por Charles Gounod um século mais tarde para compor sua famosa Ave Maria; curiosamente ele é justamente a peça mais fácil do Cravo, e por uma margem substancial.
A Oferenda Musical (BWV 1079):
Depois do famoso encontro arranjado entre Bach e Frederico II, o pai da música ofereceu ainda mais uma prova de seu gênio, através da Musikalisches Opfer. Usando o tema que o rei lhe havia disponibilizado, Bach escreveu uma série de peças e as ofereceu como tributo ao monarca. Dentre as peças oferecidas encontram-se um Ricercar a 3 Vozes, um Ricercar a 6 Vozes, 9 Cânones, uma Fuga Canônica e uma Sonata para Trio.
Não só uma prova de maestria para aqueles que a conseguirem tocar, a Oferenda é uma verdadeira aventura para aqueles que decidem a destrinchar. Nela Bach empregou ao máximo sua habilidade em criar música que vai além de si. Existe uma série de artigos onde pode-se saber mais sobre essa obra, alguns estarão citados no fim deste artigo. Vale também destacar que, tirando a Sonata para Trio, nenhuma das peças indica em que devem ser tocadas e uma boa parte delas vem na forma de um enigma a ser resolvido.
A Arte da Fuga (BWV 1080):
Escrita entre 1742 e 1749, Die Kunst der Fuge é uma verdadeira prova de transcendência. Composta por Bach já em seus últimos anos, a coletânea compreende uma série de fugas progressivamente extraordinárias. A Arte da Fuga é considerada por diversos estudiosos como um dos ápices da tradição musical ocidental e é, indubitavelmente, um dos poucos exemplares que leva tanto a capacidade criativa quanto a técnica musical aos seus respectivos limites.
A coletânea compreende aproximadamente 20 peças, a depender da edição. Sendo dessas: 14 Fugas (Contrapunctus), 4 Cânones e inversões de alguns dos Contrapunctus. Assim como na Oferenda Musical, não há indicação de qual a instrumentação correta, apresentações da atualidade tendem ao piano, ao cravo, ao órgão e às cordas. Uma curiosidade popular sobre essa obra é que, no Contrapunctus XIV, considerado inacabado por alguns estudiosos, Bach usa seu próprio nome para escrever um pequeno tema, seguido de uma interrupção brusca da música.
Variações de Goldberg (BWV 988):
As Variações de Goldberg foram escritas por volta de 1741 sobre o tema de uma ária que se encontrava no Caderno para Anna Magdalena Bach. Estudos recentes questionam a veracidade da história, no entanto, a versão popular da origem desse conjunto diz que Bach as escreveu para um músico chamado Johann Gottlieb Goldberg, que era instrumentista de um certo Conde Keyserling. Esse conde tinha problemas com sono e teria supostamente pedido que Bach compusesse algo para lhe ajudar a lidar com as noites em claro.
A coletânea é composta por um tema seguido de 30 variações. Sua popularidade se deve principalmente a sua beleza intrínseca, uma obra sublime que transborda em amor à vida. Não simplesmente belas, essas variações fazem seu nome ao representarem um marco essencial na história da forma Tema e Variações. Ademais, elas contém em si profecias do que viria a se tornar parte do estilo romântico por volta de um século depois, o exemplo mais claro disso está na Variação No.25.
Outras Peças
O repertório bachiano, como dito anteriormente, é um dos mais extensos do cenário musical e comentar individualmente cada peça seria uma tarefa hercúlea, não obstante, é imprescindível ao menos citar algumas peças com teclado que acabaram ficando de fora do detalhamento.
Suites Inglesas (BWV 806-811): Pérolas escritas no período em Weimar. Um desafio para pianistas intermediários, peça dignas das salas de concerto.
Suites Francesas (BWV 812-817): Similares em forma as suas irmãs, foram escritas por um Bach mais experiente, já em Köthen. Em geral, consideradas um pouco mais fáceis que as Inglesas, igualmente esplendidas.
Toccatas (BWV 910-916): Peças tradicionalmente barrocas, cheias de virtuosismo com carácter improvisatório. Incríveis para o estudante em busca de um Bach diferente do usual.
Fantasia e Fuga Cromática (BWV 903): Uma das profecias de Bach sobre o Romantismo. Caracteriza-se como uma peça complexa até para profissionais. Um dos pontos altos de Bach no quesito harmonia.
Bibliografia de Aprofundamento:
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BOYD, Malcolm. Bach. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2006.
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WOLFF, Christoph. Johann Sebastian Bach: The Learned Musician. Nova York: W.W. Norton, 2000.
Parabéns, Carlos! Fica claro o seu interesse e compreensão sobre o tema. Obrigado por compartilhar informações valiosas sobre esse ícone musical!
Muito interessante!